Em minha última sessão de Fonoaudiologia, tive como tarefa
ler um texto onde deveria ressaltar os “esses” prolongando-os e ao mesmo tempo forçando
um sorriso
Assim comecei a ler aquele texto publicado
em 1972 no Jornal do Brasil e tão logo os primeiros forçados
sorrisos eram formados o texto iniciou sua invasão na minha mente, que
atualmente é estagiária em Filosofia, e não resistiu a provocação da reflexão.
Então, imaginando a cena: eu lendo e forçando os “esses” e
um sorriso “amarelo” com: A gente se
acosssssssssstuma... e aos poucos transferindo o pensamento da obrigação do exercício da leitura para a inevitável reflexão.
A concentração nas obrigações do exercício logo se
perderam, em especial no trecho “A gente se acostuma a abrir o jornal e a
ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números
para os mortos.”, daí até
o fim eu já nem percebia se estava ou não forçando o sorriso e os fonemas com “s”
Ao final
não estava preocupado com o exercício e sim com a profundidade do texto que
acabara de ler.
Logo as reflexões dos motivos que nos levam a nos acostumar com
fatos e rotinas indesejáveis, injustas, inaceitáveis e mais do que isso,
provavelmente evitáveis, já estavam em ebulição na minha mente.
Será que
somos tão passivos a aceitar tudo que nos impõem mesmo que sejam “coisas” e
situações que não nos fazem bem?
Onde está
a nossa força para um BASTA. Isso tem que ser modificado e melhorado? Isso não
é bom para mim e nem para ninguém. Como mudar? Como rejeitar?
Talvez no
nível individual de fato queremos o “basta”, mas e em nível coletivo como
sociedade, seriamos considerados loucos, subversivos, utópicos...
Mas, venha comigo, na
sequência reproduzo o texto que tive como exercício, com o título “Eu sei que não devia” de Marina Colasanti,
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não
devia.
A gente se acostuma a morar em
apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E,
porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não
olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não
abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que
se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está
atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A
comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é
noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado
sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a
ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E,
aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não
acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números,
da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia
inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem
receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que
deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E
a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que
as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver
cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a
comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido,
desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas
fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro
tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir
passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não
colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para
não sofrer. Em doses pequenas, tentando não
perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no
fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica
satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na
aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Agora,
aqui entre nós: com um texto assim, tem como se concentrar em exercícios de
fono?
Um abraço a todos
Excelente texto, Silvio! Parabéns pelo blog!!
ResponderExcluirPodemos nos acostumar, mas NUNCA nos acomodar\nos conformar!
ResponderExcluirAmo esse conselho:
"E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa agradável vontade de Deus". Rm 12:2
Excelente texto!