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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A Gente se Acostuma


Em minha última sessão de Fonoaudiologia, tive como tarefa ler um texto onde deveria ressaltar os “esses” prolongando-os e ao mesmo tempo forçando um sorriso

Assim comecei a ler aquele texto publicado em 1972 no Jornal do Brasil e tão logo os primeiros forçados sorrisos eram formados o texto iniciou sua invasão na minha mente, que atualmente é estagiária em Filosofia, e não resistiu a provocação da reflexão.

Então, imaginando a cena: eu lendo e forçando os “esses” e um sorriso “amarelo” com: A gente se acosssssssssstuma... e aos poucos transferindo o pensamento da obrigação do exercício da leitura para a inevitável reflexão.

A concentração nas obrigações do exercício logo se perderam,  em especial no trecho A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos.”, daí até o fim eu já nem percebia se estava ou não forçando o sorriso e os fonemas com “s”

Ao final não estava preocupado com o exercício e sim com a profundidade do texto que acabara de ler.

Logo as reflexões dos motivos que nos levam a nos acostumar com fatos e rotinas indesejáveis, injustas, inaceitáveis e mais do que isso, provavelmente evitáveis, já estavam em ebulição na minha mente.

Será que somos tão passivos a aceitar tudo que nos impõem mesmo que sejam “coisas” e situações que não nos fazem bem?

Onde está a nossa força para um BASTA. Isso tem que ser modificado e melhorado? Isso não é bom para mim e nem para ninguém. Como mudar? Como rejeitar?

Talvez no nível individual de fato queremos o “basta”, mas e em nível coletivo como sociedade, seriamos considerados loucos, subversivos, utópicos...

Mas, venha comigo, na sequência reproduzo o texto que tive como exercício, com o título “Eu sei que não devia” de Marina Colasanti,

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os  mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando  não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Agora, aqui entre nós: com um texto assim, tem como se concentrar em exercícios de fono?

...não vou me acostumar.. não vou me acostumar... (Peço ao Nando Reis a minha licença poética em substituir o adaptar por acostumar.)

Um abraço a todos







2 comentários:

  1. Excelente texto, Silvio! Parabéns pelo blog!!

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  2. Podemos nos acostumar, mas NUNCA nos acomodar\nos conformar!
    Amo esse conselho:
    "E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa agradável vontade de Deus". Rm 12:2
    Excelente texto!

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